Entrevista
“Queremos uma economia de base florestal que una produção, conservação e conhecimento”
Diretor do Inpa, Henrique dos Santos Pereira, fala sobre os desafios de manter a pesquisa viva na região, a importância de transformar conhecimento em desenvolvimento sustentável e o papel do Instituto na nova economia da floresta
Criado em 1952, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) atravessa sete décadas como um dos pilares da ciência brasileira. De suas coleções biológicas às pesquisas que moldaram o entendimento sobre a fauna, a flora e o clima da região, o Instituto segue sendo uma referência mundial em biologia tropical. Mas, em tempos de transição ecológica e tecnológica, o desafio vai além de produzir conhecimento: é preciso garantir que a ciência dialogue com o desenvolvimento econômico, a inovação e a sociedade amazônida.
À frente do Inpa desde novembro de 2023, o diretor Henrique dos Santos Pereira tem trabalhado para aproximar o Instituto da vida prática da Amazônia, fortalecendo parcerias com universidades, empresas, governos e organizações locais. Ele defende uma bioeconomia que valorize a floresta em pé e a sabedoria dos povos que a habitam, rejeitando modelos de monocultura e priorizando sistemas agroflorestais e tecnologias sustentáveis. A meta é fazer da pesquisa um instrumento de soberania e geração de valor regional.
Em entrevista concedida à PIM Amazônia, o diretor fala sobre os caminhos do Inpa para transformar descobertas em produtos, o diálogo com o Polo Industrial de Manaus, o papel da ciência frente às mudanças climáticas e o futuro da instituição. Confira:
Qual é o principal papel do Inpa? Qual a missão dele na época em que foi criado? Essa missão hoje ainda permanece ativa?
Tenho de começar respondendo de trás para frente. O Inpa se mantém fiel à sua missão inicial e tem uma história muito importante que precisa ser conhecida. No final da Guerra Mundial, com o surgimento do multilateralismo, uma das agências criadas foi a Unesco, um órgão das Nações Unidas para a Cultura, Educação, etc.
E uma proposta brasileira nascente da Unesco era criar um instituto internacional, o Instituto Internacional da Hiléia. Isso suscitou um debate brasileiro, especialmente entre os políticos, deputados e senadores, vendo-o como uma ameaça à soberania brasileira na Amazônia. Em resposta, o governo Getúlio Vargas cria, em 1952, um Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
Mas ele foi implementado dois anos depois. O Inpa comemora duas datas: a sua criação e a sua implementação. A história da nossa instituição, então, é uma resposta brasileira, uma reafirmação da soberania científica e, portanto, da soberania brasileira sobre este território.

Mas hoje nós temos o Instituto Nacional de Pesquisas do Semi-Árido, do Pantanal, da Mata Atlântica. Nós somos hoje uma unidade de pesquisas do MCTI, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Na sua origem, nós estávamos praticamente juntos com o CNPq, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O CNPq é mais antigo do que o Inpa, é mais antigo do que o próprio MCTI, que só existe há 40 anos.
Nós não somos a instituição científica tecnológica mais antiga da Amazônia. Talvez a segunda. A primeira é o Museu Paraense Emílio Goeldi, que vai completar ano que vem 160 anos. Mas somos hoje três organizações, juntamente com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Uma característica marcante do Inpa é que ele também forma pesquisadores. Formamos cientistas para a Amazônia. Já foram mais de 3 mil cientistas formados pelo Inpa e a notícia importante é que 70% deles estão na região amazônica.
O orçamento do Inpa hoje está girando em torno de 40 milhões/ano. O senhor acha que esse valor é suficiente para atender às demandas que são colocadas frente ao Inpa e de que formas o senhor poderia ampliar esse orçamento que não seja através do MCTI?
Nós somos uma unidade direta do MCTI, portanto, somos uma organização federal e o nosso orçamento é público, é orçamento federal. E acho que todo mundo acompanha a luta do governo para aumentar a arrecadação e poder investir mais. E nenhuma organização pública tem o orçamento dos seus sonhos e nós estamos falando da Amazônia. É só pensar nas dimensões desse território. Você pode imaginar o quanto de investimento seria necessário para cumprir sua plena missão? O valor nominal desse orçamento não tem variado nos últimos anos. Então, a cada ano que passa, a gente tem que enfrentar uma situação que é um custo que aumenta por causa da inflação. Nós somos uma organização que compra e que adquire serviços. Então, isso é um problema sim. O ideal é que o orçamento fosse corrigido, conforme a inflação, como todos os outros preços. Mas essa não é a realidade do orçamento. Somos uma parcela da lei de orçamentos. Então depende da arrecadação geral da União.
Existem os recursos extraorçamentários. E é aí onde está a nossa estratégia principal para manter o Inpa, essa instituição altamente produtiva. Nós somos, apesar de pequenos, a terceira instituição brasileira que mais produz conhecimento sobre a Amazônia. Esse é um documento que acabou de sair, um estudo encomendado pela Capes. Hoje, nós somos um pouco mais de 300 servidores, metade deles, ou um pouco menos, são os cientistas do Inpa.
Então, mesmo com um custo pequeno, nós temos uma produção muito significativa. Não apenas numericamente falando, mas a qualidade, a produção científica do Inpa, o que nos coloca realmente como uma instituição importante. Então, respondendo a sua pergunta, nós não podemos depender única e exclusivamente do recurso do orçamento da União. Ele é destinado principalmente para a manutenção e alguns investimentos que é possível fazer.
Nós temos outras sedes fora Manaus. Nós temos uma sede em Rio Branco, uma sede em Boa Vista, uma sede em Porto Velho e uma sede em Santarém. Estamos nos preparando para criar uma sede também em Macapá e provavelmente em um futuro um pouco mais distante, uma sede no norte do Mato Grosso. Afinal, volto a insistir, nós somos o Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia.
O Inpa é uma instituição muito competitiva e a nossa mais importante arrecadação vem da competição por recursos de outras fontes, como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o FNDCT, que é administrado pela Finep, a Financiadora de Estudos e Projetos. Nós captamos 2 vezes e meio esse orçamento em recursos orçamentários, por exemplo, considerando só os editais públicos. Mas também há as parcerias público-privadas através dos outros fundos setoriais, como a Agência Nacional de Petróleo. Nós temos um contrato de trabalho com uma empresa petrolífera internacional que investe em pesquisas na área de créditos de carbono. Então, nós temos outras estratégias. Agora, é claro que o ideal é que o orçamento pudesse ser ampliado. Mas há prioridades e nós vamos nos ajustando conforme o caixa.
Qual é a relação do Inpa com as empresas do Polo Industrial de Manaus? O contexto de incentivos da Zona Franca propõe verba para pesquisa e desenvolvimento através da Lei de Informática, em que um dos percentuais é para instituições nacionais de pesquisa. Pode haver alguma relação entre a entidade e essas empresas que têm interesse em investir em pesquisa?
O perfil de interesse das empresas do Distrito é de tecnologia de informação e comunicação eletrônica. Não é o nosso mitiê. Mas, claro, junto com os programas prioritários, a gente também quer uma Zona Franca para a bioeconomia. Estou esperando essa virada de chave e aí certamente o Inpa seria um parceiro muito interessante. Já houve captação de recursos diretamente com as empresas do Distrito, mas muito mais na área de ESG [Ambiental, Social e Governança] do que através do capital. Eu espero que ainda na minha gestão, a gente possa melhorar a nossa capacidade de captar recursos por aí.
Mas nós estamos nos preparando para nos tornarmos um parceiro mais interessante das indústrias e, para isso, nós precisamos, por exemplo, nos tornarmos uma unidade Embrapii [Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial], que é uma organização social também ligada ao MCTI, que tem um arranjo muito mais atraente para parcerias público-privadas. Isso talvez ainda aconteça na minha gestão, mas ainda não somos uma unidade Embrapii e essa é a estratégia que nós queremos implementar para aumentar o tipo de captação de recursos nas parcerias público-privadas, especialmente com o setor industrial.

Mas, mesmo assim, há um esforço, do outro lado, para criarmos também uma “Zona Franca Florestal”, ou seja, um conjunto de indústrias de base florestal. Inclusive, foi criada uma nova legislação que garante que as empresas que utilizam insumos florestais aqui também tenham direito aos incentivos administrados pela Suframa. O modelo conta com um programa especial, o PPBio [Programa Prioritário de Bioeconomia], que busca incentivar essa transição e criar um segmento industrial voltado para pigmentos, alimentos e outros produtos derivados da biodiversidade.
Nós temos parceiros nacionais e internacionais que trabalham conosco. Desenvolvemos, por exemplo, pigmentos para a indústria baseados em espécies amazônicas, por meio da chamada “química verde”, que dispensa o uso de solventes derivados de combustíveis fósseis. Já temos produtos desenvolvidos e em produção. Uma das espécies com as quais o Inpa trabalhou é o buriti, a partir do qual desenvolvemos pigmentos para a indústria de fibras, aproveitando aquela cor amarela característica do fruto.
Mesmo que uma indústria não tenha uma base florestal, existe um grande interesse em “esverdear” seus processos, ou seja, torná-los mais naturais e orgânicos. E é nesse ponto que o Inpa pode contribuir, desenvolvendo componentes e soluções que integrem a biodiversidade amazônica a essas cadeias produtivas.
A fibra de curuá começou aqui, e já existe uma fábrica trabalhando com ela. Eles estão, inclusive, querendo injetar plástico com essa fibra, mas queremos ir muito além disso. Queremos desenvolver, de fato, uma indústria que tenha como produto principal um ativo da floresta. Claro que isso envolve um processo de domesticação.
Na indústria farmacêutica, por exemplo, leva-se de 20 a 25 anos para desenvolver um novo medicamento. E há uma questão: quem vai produzir essa matéria-prima? Uma solução é copiar a molécula: você descobre uma substância na natureza, reproduz em laboratório e a insere em um processo industrial. Dá até para modificar geneticamente um organismo para que ele produza a mesma enzima de uma planta, sem precisar mais da planta. Mas esse não é o caminho que queremos. O que queremos é uma economia limpa, uma economia de base florestal.
Por isso temos investido nisso. Eu acredito que na área de alimentos também podemos ter mais indústrias: de alimentos, bebidas funcionais, produtos com valor agregado. Temos uma riqueza enorme, mas ainda exportamos muita matéria-prima sem transformação local. O caso do açaí é emblemático: uma grande empresa de bebidas desenvolveu um modelo de negócio com o açaí, mas o fruto era coletado aqui, levado para o Sul e depois voltava para cá como produto final. Houve um equívoco, porque nós não queremos consumir o açaí em caixinha tetrapak. Talvez isso funcione em outro país, onde a planta não existe, mas aqui não faz sentido. Esses modelos de negócio, que ignoram a realidade local, acabam não dando certo.
Mesmo que não seja uma indústria estritamente de base florestal, o importante é desenvolver soluções para a Amazônia. Nossos grandes desafios continuam sendo o saneamento ambiental e a comunicação. E é por isso que o Inpa se une a outras instituições, para produzir essas soluções.
Talvez isso explique por que ainda há pouco fluxo de interesse entre o Inpa e o Polo Industrial de Manaus. O modelo do Distrito é um enclave: uma indústria que, historicamente, não dialoga muito com a sociedade local, além de oferecer empregos. Claro, é o nosso principal arrecadador e tem grande importância para a economia do estado, mas, como em muitas economias contemporâneas, o setor de serviços e o terceiro setor têm se tornado cada vez mais relevantes.
O que estamos fazendo, junto ao Ministério do Meio Ambiente, é buscar construir essa corrente de desenvolvimento baseada na floresta, o que chamamos de uma sociobioeconomia de base florestal. Isso significa, de forma muito clara, que não queremos substituir a floresta por monoculturas, seja de dendê, seja de açaí. Não queremos repetir o modelo da monocultura.
Defendemos uma economia que, se for baseada em mudança de uso do solo, seja por meio de sistemas agroflorestais, que integrem produção, conservação, fixação de carbono e geração de renda. Um exemplo é o projeto Nanorad’s, que desenvolve tecnologias para a recuperação de áreas degradadas na Amazônia com base em sistemas agroflorestais, e que futuramente poderá se conectar ao mercado de crédito de carbono.

Essa é uma economia que dialoga muito mais com os interesses e com a natureza do Inpa. É claro que também temos uma área de tecnologia da informação, mas muito mais como usuários do que como desenvolvedores. O importante é estarmos conectados a esse setor, porque precisamos induzir a indústria tecnológica a desenvolver as soluções que nos interessam.
Afinal, para conhecer uma biodiversidade tão imensa como a da Amazônia, precisamos ser muito mais eficientes. Com as tecnologias convencionais, levaríamos centenas de anos para compreender toda essa biodiversidade. Hoje, com o uso de DNA ambiental, sensores que captam sons e moléculas no ar e na água, conseguimos avançar com uma velocidade muito maior do que há dez, cinco anos. É nesse sentido que nós provocamos a indústria: queremos que ela produza soluções que nos permitam estudar e conservar melhor a biodiversidade amazônica.
O CBA, o Centro de Bionegócios da Amazônia, é um parceiro ou um concorrente direto? Em alguns tipos de pesquisa, ele poderia ser um parceiro ou vocês acabam concorrendo por investimentos e iniciativas?
Acho que essa correção de rumos que o governo atual deu, tornando o que era o Centro de Biotecnologia da Amazônia em um Centro de Bionegócios, foi exatamente para diferenciá-lo de outras organizações. As organizações que estão no mesmo nicho dos institutos de ciência tecnologia são, por um lado, os outros setores do MCTI, diretamente ligados a ele; e no outro lado, estão as nossas universidades públicas, onde 90% da pesquisa científica no país tem lugar. Mas eu prefiro não considerar que nós competimos por recursos.

Nós compartilhamos recursos e uma das estratégias é fortalecer as redes de interação. O Inpa é um parceiro importante para a maioria das organizações, tanto brasileiras que desejam trabalhar na Amazônia, como também para organizações internacionais. Então, nós não competimos. Nós compartilhamos, cooperamos para captar recursos. A Universidade Federal do Amazonas é a principal parceira do Inpa. Se você olhar, 80% das publicações do Inpa tem um autor que também é da universidade.
Houve mais um anúncio de resultados de editais, o Pró-Amazônia, que foi uma parceria do CNPq com a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Os três projetos do Inpa têm pesquisadores de várias outras instituições. Então, entre as organizações desse ecossistema de ciência e tecnologia, cada vez mais, o que prevalece é o regime de cooperação.
O Inpa realizou um concurso público recentemente. Esse quadro novo de pesquisadores deve impactar hoje na atividade do Inpa? Qual é a expectativa do senhor?
Obviamente que depois de 14 anos sem concurso público, esse quadro de recursos humanos veio em um momento essencial. Nossa força de trabalho, como qualquer outra força de trabalho, envelhece, alcança a idade de aposentadoria e o Instituto foi diminuindo a sua força de trabalho. Mas é importante dizer que, mesmo assim, o Inpa continua sendo cada vez mais produtivo. Então, a eficiência dessa organização realmente é algo muito valoroso. Houve o concurso local para pesquisadores e tecnologistas; e o Concurso Nacional Unificado, para analistas de três carreiras finalísticas do MCTI. Nós recebemos 75 novos servidores e obviamente que a nossa expectativa é que eles se integrem.
E ano que vem, eu só posso esperar que duplique a nossa capacidade de trabalho. Hoje são 150 pesquisadores com os 75 novos. Então a gente tem um aumento significativo. É um reforço, mas não é o suficiente para recompor numericamente a nossa força de trabalho. A notícia é que, em 2 anos, 100 desses pesquisadores irão se aposentar. Mas há uma notícia muito boa também: nós fomos autorizados a convocar 25% do total do cadastro de reserva. Então há aí mais um reforço importante na recomposição dessa força de trabalho.
Hoje, existe uma demanda crescente por soluções baseadas na floresta. O Inpa tem integrado esse conhecimento, digamos, dos nossos povos originários? O Inpa atua nessa ponte para, talvez, transformar esse nosso conhecimento em produtos para a prateleira?
Seria trágico que o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia não tivesse uma preocupação com as ciências indígenas, com os povos originários. Felizmente, esse não é o caso. Nós somos uma organização – e na atual gestão, ainda mais – que reafirmamos uma característica, e até uma estratégia importante, que é a produção de uma ciência intercultural. E agora, eu diria que num outro patamar, inclusive. A produção do conhecimento científico na Amazônia, como em outras áreas do Novo Mundo, tem uma história de colonialismo, inclusive o colonialismo científico.
Mas se nós formos olhar o que a história apagou foi a contribuição dos povos originários, que estão aqui desde o começo. Então, hoje o Inpa produz livros em idiomas nativos: em Nheengatu, em Tukano, em Baniwa, com tradutores, com os nossos ex-alunos. O Inpa tem programas que selecionam e dedicam vagas para estudantes indígenas. Nossas pesquisas são feitas hoje numa relação mais horizontal entre o cientista, ou seja, o profissional que tem essa formação ocidental, e o diálogo com as populações originárias.
Nós fizemos, durante a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, uma conferência livre sobre ciências indígenas. Foi aqui no Inpa, um diálogo muito interessante com os intelectuais indígenas. Nós fizemos pesquisa co-construída com as comunidades indígenas no Alto Rio Negro, no Alto Solimões, com os Sateré-Mawé e com várias etnias na região.
E sobre transformar o conhecimento tradicional em bionegócio, eu diria que, antes disso, temos uma tarefa: nós temos primeiro que corrigir essa correlação, para que ela, de fato, seja um diálogo mais ético entre os pesquisadores, entre o Inpa e as comunidades. Isso a gente faz com essas diversas estratégias.
Nós estamos falando dos diferentes segmentos da sociedade, o que inclui o interesse das empresas também. Então, nós temos uma coordenação aqui de tecnologias sociais e aí a ideia não é a tecnologia para a produção de um negócio, mas para uma solução para a sociedade. Então, eu diria que a nossa relação com as populações tradicionais é muito mais no campo de uma ciência aberta das tecnologias sociais. O conhecimento tradicional associado à biodiversidade, não tenha dúvida, sempre foi o caminho mais curto para alcançarmos um conhecimento mais profundo sobre a Amazônia.
Eu não posso te dar um número, mas certamente mais da metade do que nós conhecemos como ciência ocidentalizada produzida na Amazônia começa com esse diálogo. Todos os cientistas que, na história do Inpa passaram aqui, sempre tiveram apoio dos mateiros. Hoje, estamos querendo mudar esse nome. Quem são os mateiros? Foram homens, eles eram homens em sua maioria, que conduziram as expedições à Amazônia. Eles não apenas guiavam na floresta, mas guiavam a conhecer a biodiversidade. Então, hoje nós estamos trabalhando com o Cetam [Centro de Educação Tecnológica do Amazonas] a criação de uma nova profissão, porque esses homens nunca foram reconhecidos com uma profissão.

Então, hoje nós queremos formar um “técnico em biodiversidade”, não queremos mais chamá-los de mateiros. Mas essa profissão não existe, por isso nos juntamos com o setor de educação para oferecer o primeiro curso “Técnico em Biodiversidade”. A partir disso, vamos tentar a criação de uma nova profissão, porque a história é que esses homens não existem mais. Eles envelheceram, morreram e não há uma nova geração. Mas o conhecimento continua lá nas comunidades. Só que nós não queremos mais que esses “sabedores das coisas da floresta” sejam vistos apenas como os nossos guias na florestas, mas como sendo pessoas que têm valor, que têm conhecimento, Mas para trabalhar no nosso sistema, nessa formalidade do mundo ocidentalizado, você tem que ter uma profissão.
O senhor poderia citar algum produto diferenciado ou algum resultado que tenha começado aqui no Inpa através de uma pesquisa e que, por exemplo, tenha ganhado o mercado? Algum tipo de medicamento ou algum tipo de produto alimentício? Tempos atrás, foi feito um estudo aqui para fazer matrinxã enlatada. Outro produto foi uma pomada com propriedades da floresta para tratar pacientes com diabete em caso terminal. O que o senhor pode nos contar sobre produtos do tipo?
O caso da pomada para pés diabéticos não nos compete, porque ela é baseada em uma planta exótica. Não é uma planta da Amazônia, e sim uma planta naturalizada. Tudo o que formos fazer baseado na nossa biodiversidade precisa considerar que as plantas e os animais, especialmente as plantas cultivadas, são resultado da cultura e da produção dos povos originários.
O cupuaçu, por exemplo, não existe na natureza. Ele é uma planta domesticada por gerações e gerações de agricultores indígenas. Vou te dar um exemplo, já que você quer falar da questão de um negócio, de um produto de prateleira: o Inpa é responsável pelo lançamento das variedades de pupunha para palmito, que hoje o Brasil inteiro planta e consome. O palmito em conserva que está pronto para venda foi desenvolvido aqui. Foram os pesquisadores do Inpa, no antigo departamento de agronomia, que trabalharam junto com outras espécies no melhoramento e desenvolvimento do sistema de cultivo.
Estamos falando da pupunha. Já lançamos variedades que são sucesso no Sul e no Sudeste, especialmente nesta última região, mas continuamos trabalhando com a planta. Estamos próximos de lançar variedades voltadas para a produção de fruto, o que é uma demanda crescente no mercado. No entanto, isso não acontece da noite para o dia, são pesquisas de longo prazo. Imagine: é preciso esperar gerações e gerações, plantar, colher a semente, selecionar e plantar novamente. Já estamos na terceira geração de variedades de pupunha para fruto, que o Inpa ainda deve ao mercado.
Avançamos também na pesquisa com o palmito como substituição à juçara, cuja extração quase extinguiu a espécie na Mata Atlântica. Só para te dar um exemplo: a pupunha não é uma planta que exista naturalmente na floresta. Ela é resultado da domesticação do seu ancestral selvagem, processo conduzido pelos povos originários.
Nada do que encontramos nas roças dos nossos agricultores indígenas deixa de ser produto da cultura e do conhecimento desses povos. E assim continuamos. Também estamos trabalhando com o açaí, nessa mesma direção. Existem duas espécies principais: o açaí do Pará e o açaí do Amazonas, também conhecido como açaí da mata. Nosso trabalho segue no sentido de lançar novas variedades e promover melhoramento genético, inclusive em hortaliças e em culturas agrícolas negligenciadas.
Por exemplo, o ariá é um tubérculo amazônico pouco conhecido hoje, mas que já fez parte da alimentação dos povos originários. Nas cidades da Amazônia, ele praticamente deixou de ser consumido, mas é uma planta muito interessante, com alto valor nutricional e que volta a despertar interesse, pois pode contribuir para a soberania e a segurança alimentar em um contexto de mudanças climáticas. É uma planta capaz de produzir em solos de baixa fertilidade e resistente à seca. Isso nos preocupa muito: pensar em sistemas de produção de alimentos sustentáveis em um clima em transformação. E, novamente, trata-se de uma planta amazônica que o Inpa pesquisa há mais de 40 anos e que está pronta para ser oferecida como solução.
Você falou de medicamentos. Essa é a área em que o desenvolvimento tecnológico do produto final é mais longo, podendo levar até 20 anos. No caso da pomada, ela está mais avançada, ainda nos testes clínicos, que são a fase de experimentação em humanos. Estamos, portanto, muito mais próximos de chegar a um produto final que possa ser desenvolvido por alguma empresa farmacêutica.

Mas o Inpa não é necessariamente a instituição que leva a pesquisa até o nível máximo de maturidade tecnológica. Somos o instituto mais importante de biologia tropical do mundo, e trabalhamos no início da cadeia do conhecimento. Produzimos conhecimento sobre a biodiversidade, somos a ponta inicial de toda essa rota científica. Aqui, há uma descoberta nova a cada semana. Na área de química de produtos naturais, investigamos a composição das espécies e o potencial dos princípios ativos que elas contêm.
Voltando à história do CBA, imagine uma corrida de bastão: é preciso pegar o bastão das mãos do Inpa, porque o instituto não realiza a parte do desenvolvimento de negócios. Essa aliança, essa estratégia de trabalhar com parceiros, é fundamental. O CBA vive um novo momento, se reorganizando como centro de negócios, e esperamos que, a partir disso, constitua o seu próprio ecossistema, e o Inpa certamente já é um parceiro do CBA.
No futuro, esperamos que o CBA esteja correndo em alta velocidade. Vamos passar o bastão para eles, com as descobertas que fazemos aqui e que poderão se transformar em negócios lá na frente.
Então, isso significa que o Inpa não tem capacidade de transformar pesquisa em produto?
Sim, muito embora tenhamos o nosso núcleo de inovação – temos uma incubadora. Assinei contratos com as incubadas. Temos todo esse processo, mas isso representa apenas uma parte do Inpa dentro de todo esse sistema. O que mais queremos é que essas descobertas, ou tudo aquilo que conseguimos conduzir até certo ponto no processo tecnológico, possam continuar em outra instituição, em uma startup, em uma empresa incubada nossa ou junto aos nossos parceiros.
Essa é a diferença entre uma universidade e um instituto como o nosso. Nós fazemos a ciência básica avançar até um certo nível de maturidade tecnológica, porque nossos laboratórios e pesquisas buscam aplicações, o desenvolvimento de tecnologias para o uso sustentável da biodiversidade. Mas também temos uma missão muito importante: contribuir para a conservação dessa biodiversidade. Ou seja, o conhecimento básico serve tanto para a aplicação e o uso quanto para a manutenção e preservação da natureza.
Aqui, somos o centro mais importante de estudos de mamíferos aquáticos, com foco na conservação do peixe-boi da Amazônia, espécie cuja sobrevivência depende das pesquisas realizadas no Inpa. Temos 12 coleções científicas fundamentais para o conhecimento da biodiversidade, como a Coleção de Peixes e o nosso Herbário, que é o quinto mais importante da região, com mais de 300 mil espécies catalogadas.
Estamos construindo o novo Herbário do Inpa, que vai dobrar a capacidade de indexação, ou seja, de catalogar as plantas e espécies da Amazônia. Também mantemos três coleções microbiológicas. Assinei um convênio de cooperação técnica com a Fundação de Vigilância em Saúde, da qual o Inpa é parceiro nos serviços de vigilância em saúde. Tivemos papel importante durante a pandemia, com o monitoramento genômico, contribuindo para solucionar problemas de saúde pública no Amazonas.
Realizamos estudos com vírus, micobactérias e doenças socialmente determinadas ou negligenciadas, como tuberculose e alguns tipos de câncer, além de pesquisas voltadas para possíveis curas.
O Inpa é, portanto, uma instituição ampla e complexa, e talvez o conhecimento que a sociedade tem sobre o que o Inpa realmente é ainda seja parcial, o que não é surpresa. Por isso, mantemos o Bosque da Ciência, que recebe cerca de 120 mil visitantes por ano, permitindo que a população conheça mais de perto a instituição.
Essa é uma tentativa de aproximar a sociedade da ciência. Precisamos desse apoio, inclusive para defender a permanência e a sobrevivência das instituições científicas na Amazônia, especialmente em um momento em que enfrentamos uma epidemia de negacionismo, inclusive o científico. Por isso, a comunicação é extremamente importante.
O senhor tem uma experiência e uma expertise interessante nessa área de pesquisa, gestão ambiental e diplomacia científica. Como é que o senhor enxerga o Inpa do futuro? Seu mandato vai até 2027, no que o senhor gostaria que o Inpa se tornasse daí pra frente?
Eu acho que a ambição mínima é continuar fiel à nossa missão. Já fomos questionados porque somos uma instituição antiga, então pode ser que, numa análise um pouco superficial, alguém pense que o Inpa não é uma instituição que evolui.
Mas nós evoluímos. A ciência evolui, e cada vez mais rapidamente. Acompanhamos todas as novas tecnologias científicas. Há pouco, eu falava de tecnologias disruptivas. Vamos citar a inteligência artificial: ela já está presente aqui conosco, apoiando e acelerando processos e pesquisas. Utilizamos também as mais recentes geotecnologias, como o LiDAR, o radar a laser, que já está em uso no instituto. Na área de análise química, possuímos os equipamentos mais avançados.
Podemos ser uma instituição antiga, mas não uma instituição velha. Acompanhamos a evolução. Portanto, o patamar mínimo de ambição é que o Inpa continue sendo uma organização atual, atualizada e fiel à sua missão.
Agora, geopoliticamente falando, a minha ambição como dirigente desta instituição é afirmar a nossa capilaridade territorial. Por isso, queremos abrir um Núcleo de Apoio à Pesquisa no Amapá e outro no norte do Mato Grosso. Queremos reforçar nossa rede de atuação em toda a região.
Ir para o futuro significa ter um Inpa mais presente, atuando mais profundamente na Amazônia, chegando mais longe e mantendo um diálogo cada vez mais intenso com a sociedade e com os governos locais. Nesse 1 ano e meio em que estamos à frente da gestão, já assinamos diversos acordos.
Não preciso me preocupar com a internacionalização do Inpa, porque o Instituto nasceu justamente para combater a ideia de uma internacionalização imposta de fora para dentro. O Inpa sempre teve parceiros importantes. Na próxima semana, por exemplo, receberemos o presidente da Sociedade Max Planck, com a qual mantemos uma cooperação de mais de 60 anos, uma das mais importantes parcerias científicas entre o Inpa e os principais institutos de pesquisa da Alemanha.
Nossos projetos mais avançados em estudos do clima também são resultado de cooperações internacionais: uma com o Reino Unido e outra com o governo da Alemanha. Essa é outra ambição: ampliar nossas parcerias internacionais, privilegiando as cooperações Sul-Sul.
Pela primeira vez, formamos uma rede de cooperação entre os “Inpas” dos outros países amazônicos. O Inpa ocupa a vice-presidência dessa rede, que envolve os três institutos brasileiros: o Museu Goeldi, o Instituto Mamirauá e o próprio Inpa; e os dois principais institutos da Colômbia: o Instituto Humboldt e o Instituto SINCHI (que é o Inpa da Amazônia colombiana). Também integram a rede o IIAP, que é o Instituto de Investigação da Amazônia Peruana; o Inabio, Instituto de Biodiversidade do Equador; e, no caso da Bolívia, um instituto de ecologia vinculado a uma universidade.

Nossa ambição é avançar nessa rede, embora o tempo e o ritmo sejam diferentes em cada país. Neste momento, ainda não há participação de institutos da Venezuela, da Guiana ou do Suriname. Outra frente importante da diplomacia científica é o Centro Franco-Brasileiro de Biodiversidade da Amazônia, do qual o Inpa ocupa a presidência nacional, resultado da nossa cooperação com a Guiana Francesa.
O Inpa do futuro já é o Inpa do presente: um instituto conectado à Pan-Amazônia. Mantemos uma relação direta e um diálogo constante com a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, estando plenamente integrados à política científica para a região.
Esse é o Inpa do futuro que queremos. Um Inpa que apenas se fortaleça nessa direção, tanto nas cooperações Norte-Sul quanto nas cooperações Sul-Sul. O Inpa já é uma referência para os outros países amazônicos, mas não queremos apenas ser uma referência. Queremos construir juntos, ser parceiros e cooperar com os demais institutos. Nosso projeto, inclusive, vai nos levar a participar da COP30 como parte desse conjunto de organizações da Amazônia.
